Todos os momentos são bons para se refletir e debater sobre quais devem ser as prioridades de política pública em matéria de Saúde. Após dois anos de pandemia, em que todo o sistema de saúde, com destaque para o Serviço Nacional de Saúde (SNS), esteve sob uma pressão nunca antes vista, este debate tornou-se mais premente. E quando nos aproximamos de um momento eleitoral em que os candidatos a futuros governantes apresentam as suas linhas de ação para os próximos anos, é essencial que o debate se alargue e que seja dada voz a quem trabalha no sistema de saúde, ou seja, quem sente de perto as dificuldades e tem presente as oportunidades de melhoria.
Foi com o objetivo de promover este debate e de ouvir os agentes do setor da saúde que a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) e a EY auscultaram alguns dos principais atores do sector, sobre o que esperam ver nos programas eleitorais que irão a votos. Espera-se com as conclusões deste estudo dar um contributo para que o próximo Programa de Governo incorpore as matérias que são consideradas prioritárias por quem melhor conhece o sector da Saúde em Portugal.
Nessa sequência a APAH e EY promoveram a realização de um questionário, entre 14 de dezembro de 2021 e 3 de janeiro de 2022, que foi divulgado tanto de forma direta às suas bases de contactos como através das redes sociais. O público alvo incluiu administradores hospitalares, profissionais de saúde e associações representantes dos utentes, tendo sido obtidas 141 respostas. Os respondentes da área da administração hospitalar, das carreiras médica e de enfermagem representaram 76% da amostra, que incluiu também 11 associações de utentes. Mais de 80% dos respondentes tinham 11 ou mais anos de experiência no sector e a amostra assegurou uma cobertura alargada do território nacional.
Globalmente, observa-se existir um consenso alargado quanto aos temas que os participantes gostariam de ver nos programas eleitorais em matéria de Saúde:
Talento
Em praticamente todas as economias avançadas e em todos os sectores assiste-se atualmente ao que já se designou por “guerra pelo talento”, com uma competição feroz pelos recursos mais qualificados e uma crescente preocupação com o equilíbrio entre a vida profissional e pessoal. Como seria de esperar, num sector com uma pressão física e psicológica muito elevada durante já dois anos, esta é uma preocupação central para quem trabalha em saúde. Assim, 66% dos respondentes consideram essencial que os programas eleitorais apresentem as medidas a tomar no sentido de reter e desenvolver os profissionais do SNS.
Este tema é concretizado noutra questão, em que são identificados três mecanismos considerados essenciais por cerca de 70% da amostra: é importante rever os modelos de compensação e benefícios dos profissionais do SNS; é importante redefinir o papel de médicos e enfermeiros, revisitando modelos de carreira, formação e retenção; é importante criar mecanismos que deem maior autonomia às unidades de saúde na contratação dos recursos de que necessitam para cumprir a sua missão.
É de salientar que estas prioridades mais estratégicas se sobrepuseram às opções de resposta que propunham majoração do tempo de serviço ou a atribuição de subsídios de risco durante a fase da pandemia. A mensagem é clara: quem está no SNS prefere ver nos programas eleitorais sinais claros de mudança estrutural do que vantagens de curto prazo que não contribuem para resolver os problemas de fundo.
Governação
Para 65% da amostra, os partidos políticos deviam apresentar a sua visão em matéria de modelo organizativo que defendem para o SNS, incluindo a definição do papel das ARS. Praticamente a mesma importância é dada ao modelo de integração da rede de cuidados de saúde, selecionado como uma de três prioridades por 61% da amostra, e para a definição do papel e prioridades de desenvolvimento do SNS, escolhido por 59% da amostra.
Este ponto cobre aspetos centrais da organização da rede global de cuidados de saúde, incluindo a articulação entre cuidados primários, especializados e continuados. Inclui também a clarificação do grau de descentralização que se pretende em Saúde e da forma como serão alocadas responsabilidades de gestão. Finalmente, envolve a definição de prioridades em matéria de investimento, da integração da oferta de cuidados e de inovação organizacional e tecnológica.
Financiamento do SNS
Para 99% da amostra, o modelo de financiamento do SNS deve constar dos programas eleitorais. De entre as respostas possíveis, as duas mais escolhidas (por 30% e 29% da amostra, respetivamente) foram a que incluía a referência à reforma do SNS, nomeadamente a melhoria da articulação entre cuidados primários e secundários, e a que propunha a ligação entre financiamento e resultados. É de realçar a importância que a amostra atribui à evolução de uma visão tradicional em que o financiamento está associado à produção para uma perspetiva mais próxima do utente, com um modelo de financiamento baseado no valor que é gerado (Value-Based Healthcare), medido em resultados para a saúde dos utentes.
Como segundas prioridades foram identificadas a necessidade de uma ótica plurianual para os investimentos em saúde e de uma definição clara do âmbito de atuação do SNS, opções escolhidas por 16% e 14% da amostra, respetivamente.
Estas escolhas mostram alinhamento com o ponto anterior e parecem refletir uma postura dos agentes do sector da saúde que pretende clareza quanto ao papel, modelo de organização e grau de articulação do SNS, dos quais possa resultar um modelo de financiamento plurianual, desenhado em torno de prioridades estratégicas e que inclua medidas claras em matéria de carreiras e compensação dos profissionais de saúde.
Investimento
O questionário pedia aos participantes para identificarem, numa escala de zero a cinco, o grau de importância que atribuem a que os programas eleitorais identifiquem medidas específicas sobre um conjunto de possíveis prioridades de investimento. Os resultados foram avaliados com base na média das respostas.
As opções menos pontuadas foram o investimento em pessoal auxiliar e em equipamentos ou meios complementares de diagnóstico. Ainda assim, com uma pontuação de 3,6, estas áreas são claramente vistas como necessitando de investimento.
A principal prioridade foi atribuída aos investimentos em pessoal médico e de enfermagem, com uma pontuação de 4,05 e 4,04 (num máximo de cinco). Seguiram-se os investimentos no alargamento e remodelação da rede de cuidados de saúde e em tecnologia e sistemas de informação, ambas pontuadas com 3,91.
Jornada do Utente
O estudo também mostrou uma grande motivação dos inquiridos para conhecerem as propostas dos partidos no que respeita a medidas com impacto na experiência dos utentes. Para 79% da amostra é importante perceber como se pretende criar uma experiência do utente mais simples e intuitiva, com comunicação efetiva entre utentes, profissionais de saúde e instituições de saúde. Já para 67% da amostra é importante conhecer de que forma pensam os partidos reduzir os tempos de espera para consultas, cirurgias e exames, nomeadamente através de articulação com a rede privada e social de cuidados de saúde.
O corpo do estudo deu também voz a respostas abertas, em que os participantes tiveram a oportunidade de partilhar as suas perspetivas sobre as prioridades em matéria de saúde, tendo sido abordadas questões como a necessidade de se trabalhar a literacia em saúde, a autonomia das administrações hospitalares, o modelo de nomeação para cargos de liderança no SNS, a articulação com os sectores social e privado, a exclusividade, o SIADAP ou a importância da prevenção da doença.
Globalmente, os resultados apresentam de forma clara as prioridades de quem conhece de forma muito próxima a realidade do sector da saúde em Portugal, que são pistas importantes para informar os próximos decisores em matéria de política pública de saúde. Pode consultar os resultados finais do estudo no relatório infra.
Para a APAH e EY, este estudo é um contributo para ajudar a estruturar a discussão e para se ganhar um melhor entendimento do que é importante para os agentes do sector da saúde, incluindo administradores hospitalares, profissionais de saúde e associações representantes dos utentes. O passo seguinte cabe aos partidos políticos, que devem ser claros quanto aos seus projetos e à forma como querem dar resposta aos temas levantados e às necessidades dos utentes. Depois disso, cabe a todos avaliar qual a melhor visão para o futuro da saúde em Portugal e, em consciência, votar.