- Em 2018, a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) teve conhecimento, através de alguns dos seus associados, da interpretação que a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) tem vindo a fazer sobre alguns preceitos legais aplicáveis aos membros dos Conselhos de Administração dos Hospitais Públicos, E.P.E., interpretação essa que colide não só com aquela que tem sido generalizadamente feita e difundida por diversos órgãos da Administração Central Direta e Indireta do Estado (nomeadamente do Ministério das Finanças e do Ministério da Saúde), bem como pela interpretação que tem sido até hoje comummente perfilhada pelos diversos hospitais e outras empresas públicas.
- Por motivos que facilmente se compreendem, esta Associação encontra-se extremamente preocupada com esta situação: na verdade, não é aceitável, num Estado de Direito, que cidadãos (e.g. administradores hospitalares, médicos, enfermeiros, gestores) que aceitam funções com aquela responsabilidade, sejam responsabilizados (e quase “perseguidos”) por praticarem atos que não só se encontram legalmente respaldados, como são consequência de inúmeras recomendações dos próprios órgãos da Administração Direta do Estado.
- Assim, e em face da insegurança jurídica criada pela recente atuação da IGAS, nomeadamente pelos Relatórios das inspeções que têm vindo a ser conhecidos e das posições e teses ali defendidas, que colidem integralmente com o que decorre quer da lei quer das referidas orientações da Administração Central, esta Associação entende que a questão não pode deixar de ser clarificada pelos Ministérios das Finanças e da Saúde.
- Nesta mesma linha, damos nota que, desde 2018, solicitamos formalmente ao Governo esclarecimentos sobre esta matéria, sem que tenhamos recebido resposta formal até ao momento. A APAH aguarda, com expectativa, a resposta aos esclarecimentos requeridos por forma a que seja encontrada e reposta a tranquilidade relativamente a esta matéria.
- Até ao devido esclarecimento por parte dos Ministérios das Finanças e da Saúde, a APAH recomenda a todos os associados a suspensão da utilização das viaturas de serviço, ainda que esta esteja prevista ao abrigo do artigo 33.º do Estatuto dos Gestores Públicos, ou mesmo que esta suspensão venha a implicar mais custos para o erário público.
- Os administradores hospitalares respeitam a lei e pautam a sua atividade pelo seu consciente cumprimento, garantindo o enquadramento dos atos decisórios e observando o dever de fundamentação expressa dos atos administrativos. Nesta senda, assumem a responsabilidade pelos atos praticados no exercício das suas funções, tendo presente que todos os atos são auditáveis. O objetivo último desta profissão é melhorar a saúde das populações, respondendo às expectativas dos cidadãos e protegendo-os do risco financeiro da doença através da boa gestão dos recursos que lhe são disponibilizados pela sociedade. Qualquer comportamento fora deste primado merece repúdio e terá as devidas consequências por parte desta Associação.
Lisboa, 5 de agosto de 2019
A Direção da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares
O Objeto da Controvérsia – o artigo 33.º do Estatuto dos Gestores Públicos
Na sua atual redação, o Artigo 33.º do Estatuto dos Gestores Públicos prescreve que:
“1 – O valor máximo das viaturas de serviço afetas aos gestores públicos é fixado por deliberação em assembleia geral, no caso das sociedades anónimas, ou por despacho, publicado no Diário da República, do membro do Governo responsável pela área das finanças, no caso das entidades públicas empresariais.
2 – O valor previsto no número anterior é fixado à luz das orientações que venham a ser estabelecidas para o efeito pelos acionistas ou por despacho, publicado no Diário da República, do membro do Governo responsável pela área das finanças.
3 – O valor máximo de combustível e portagens afeto mensalmente às viaturas de serviço é fixado em um quarto do valor do abono mensal para despesas de representação.”
Desde cedo se generalizou o entendimento que daquele preceito resultava que os gestores públicos tinham direito a que lhe fosse atribuída uma viatura de serviço para a sua utilização, não podendo, no entanto, o valor dessas viaturas ultrapassar uma determinada quantia – que era depois fixada pelas entidades competentes. E, simultaneamente, resultava também do n.º 3 que era atribuído um determinado valor para as despesas de combustível a quem usufruísse daquela viatura.
Os membros dos Conselhos de Administração dos Hospitais Públicos regem-se por esse Estatuto, aplicável a todas as Entidades Públicas Empresariais. Aquele entendimento foi, durante alguns anos, aceite inquestionavelmente, decorrendo diretamente da Lei e das orientações veiculadas pela Administração. Com efeito, era esse o único entendimento possível face ao Despacho conjunto n.º 351/2006, de 31 de maio de 2006, dos Ministérios das Finanças e da Administração Pública e da Saúde, publicado na II.ª Série do Diário da República a 26 de abril de 2006, e no qual se afirmava que:
“[…]
4—Sem prejuízo da aplicação do estabelecido na Resolução do Conselho de Ministros n.º 121/2005, de 23 de Junho, e na Resolução do Conselho de Ministros n.º 155/2005, de 8 de Setembro, os membros dos conselhos de administração beneficiam, ainda, das seguintes regalias e benefícios complementares:
a) Aplicação das regalias sociais sem carácter pecuniário de aplicação generalizada a todos os trabalhadores da sociedade;
b) Utilização pessoal de viaturas de serviço, por parte dos membros executivos do conselho de administração, cujo valor máximo de aquisição não pode exceder os seguintes limites:
i) € 35 000 para os hospitais classificados como empresas públicas do grupo A;
ii) € 30 000 para os hospitais classificados como empresas públicas do grupo B.
[…]”
Entretanto, em 2011, o Tribunal de Contas desenvolveu uma Auditoria ao Sistema Remuneratório dos Gestores Hospitalares e aos Princípios e Boas Práticas de Gestão dos Hospitais E.P.E.
Nesse momento, efetuou algumas críticas àquela prática, tendo pugnado por uma “clarificação” da situação. Ou seja, não foi ali posta em causa a legalidade daquela prática (o que era impossível, de resto), tendo sido antes recordado que a afetação daquelas viaturas constituía um rendimento (devendo ser tratado como tal em sede de IRS) e a necessidade de proceder a um cumprimento rigoroso da orientação definida no Despacho n.º 10760/2010, de 22 de junho, do Ministro de Estado e das Finanças e da Ministra da Saúde, que recomendava “a redução da despesa total com a frota automóvel, […], referente a valor executado em 2009”.
Defendeu, então:
i) que a atribuição das viaturas aos membros do Conselho de Administração dos Hospitais fosse objeto de regulamentação pelos próprios Hospitais (recomendando que regulassem a questão em regulamentos internos);
ii) que os gestores a quem fosse atribuído um carro de serviço declarassem, em sede de Imposto sobre os rendimentos singulares, esse rendimento para efeitos de tributação (cfr. Relatório de Auditoria do Tribunal de Contas n.º 17/2011, em especial o ponto 10.2.5 – Utilização de Viaturas Alocadas aos Membros do Conselho de Administração).
As recomendações contidas naquele Relatório obtiveram a anuência da Inspeção-Geral de Finanças, nos termos do Despacho n.º 306/2010 proferido pelo Senhor Secretário de Estado do Tesouro e das Finanças a 26 de abril de 2010.
Posteriormente, foi emitida uma Circular (datada de 18 de janeiro de 2012) pela Diretora-Geral da Direção-Geral do Tesouro e Finanças, na qual se determinou que as empresas públicas (e, desse modo, também aos Hospitais), adotassem aquelas recomendações.
Também por essa altura, em março de 2012, foram dadas indicações expressas pela Secretaria-Geral do Ministério da Saúde a todos os Hospitais (tendo sido publicadas “FAQs” sobre o novo regime do Estatuto dos Gestores Públicos) que evidenciavam que, os valores atribuídos para combustível e portagens, apenas aos gestores que tivessem afeta uma viatura de serviço, constituíam uma das componentes da sua remuneração (com o regime dado às despesas de representação).
Aquelas recomendações, objeto de divulgação por todos os Hospitais, obtiveram enorme adesão, passando a ser prática generalizada. Ainda recentemente, em 31 de janeiro deste ano, foi divulgada pelos diversos Hospitais Públicos uma informação elaborada pela Unidade de Sistemas de Gestão de Recursos dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, onde expressamente referia que, para efeitos da Declaração a apresentar em sede de IRS, “foi criado um novo Tipo de Rendimento A66, associado ao desconto de IRS resultante da utilização pessoal pelo trabalhador ou membro do órgão social de viatura automóvel”. Ora, a necessidade da declaração, e consequente tributação desse rendimento, só se pode compreender pelo facto de ser entendimento tanto daquela Entidade, como do próprio Ministério das Finanças, que a afetação de um veículo aos gestores públicos constitui um rendimento.